A dor nas imagens de Cristo crucificado

No contexto de uma religião cujo símbolo matricial é a cruz, a iconografia da morte de Cristo é um tema naturalmente recorrente. A páthos da paixão e morte de Cristo tem sido um pretexto para a cathársis das emoções, medos e angústias que subjugam a humanidade.

Retábulo de Isemheim: 1.ª abertura: Crucificação Matthias Grunewald C. 1515 Óleo sobre madeira Colmar, Museu de Unterlinden

Retábulo de Isemheim: 1.ª abertura: Crucificação
Matthias Grunewald
C. 1515
Óleo sobre madeira
Colmar, Museu de Unterlinden

Porém, nem sempre foi assim: nos primeiros tempos do Cristianismo, a crucificação era simbolicamente referida através da representação do Cordeiro de Deus; a partir do século V, começaram a surgir as figurações de Cristo na cruz na perspetiva do triunfo sobre a morte (Christus triumphans); o tema da morte é ainda mais tardio, surgindo primeiro no Oriente e, em meados do século X no ocidente, num registo de sobriedade (Christus mortuus) que se altera no século XIV para uma progressiva teatralização do sofrimento (Christus patiens), com detalhes cada vez mais exacerbados do tormento físico até se tornar numa síntese narrativa de toda a Paixão (Roque, 2012, 8).

“Uma nova conceção do tema surge no século XIV, marcado pelos horrores da Peste Negra e pelo misticismo propagado por S. Francisco de Assis, também presente nos Exercícios de Johannes Tauler, nas Meditações da vida de Cristo de Pseudo-Boaventura (atualmente, atribuídas a Frei João de Caulibus) ou nas Revelações de Santa Brígida que, retomando as profecias de Isaías (Is. 53, 1-10), exaltavam o atroz sofrimento da paixão de Cristo e, em particular, o lento martírio da sua morte.” (Roque, 2012, 8)

Uma das mais pungentes crucificações surge nos painéis centrais do retábulo de Isenheim, pintado por Matthias Grünewald em 1512-1516, no Musée d’Unterlinden[i], na região da Alsácia. Cristo, crispado num espasmo atroz, a cabeça caída sobre o peito subjugada por uma imensa coroa de espinhos, a boca num esgar de dor, as mãos convulsas e os pés arqueados pelos cravos que os prendem à cruz, o corpo, deformado e de aspeto putrefacto, coberto de feridas purulentas com um abundante sangue negro em contraste com a lividez esverdeada da pele, é uma profunda e horrífica efígie de dor.

Retábulo de Isemheim: 1.ª abertura: detalhe da crucificação

Retábulo de Isemheim: 1.ª abertura: detalhe da crucificação

Em Portugal, a mais eloquente figura do crucificado “é o Cristo Negro, datado de c. 1375-1390, proveniente do Oratório das Donas, casa feminina anexa ao Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e atualmente no Museu Machado de Castro” (Roque, 2012, 10). Coroado de espinhos, com a cabeça caída sobre o peito, evidencia uma expressão dramática que se prolonga na representação esquálida do corpo, com o tórax evidenciado e os membros descarnados.

Cristo Negro Autor desconhecido 1375 – 1390 Escultura em madeira policromada Coimbra, Museu Nacional Machado de Castro Foto: MIR, 2013

Cristo Negro
Autor desconhecido
1375 – 1390
Escultura em madeira policromada
Coimbra, Museu Nacional Machado de Castro
Foto: MIR, 2013

“As imagens dolorosas eram um instrumento de grande impacto emocional, servindo de suporte à dramaturgia catequética e às pregações, sobretudo das ordens mendicantes, estimulando a meditação acerca os temas da Paixão e levando os fiéis a identificar-se com todo o sofrimento infligido a Cristo” (Roque, 2012, 8)

A maximização do sofrimento tem uma missão catequética, mas engloba também um objetivo catalisador motivado pelo espetro da doença e da morte provocada pelas pandemias e, em particular, pela Peste Negra que assolou a Europa durante o século XIV: não há dor maior, sofrimento mais atroz do que aquele que aqui é mostrado. É, desta forma, um processo catártico que apazigua através de uma perturbação exponencial. No âmbito da história da arte, tornou-se um pretexto para algumas das mais sublimes representações da emoção humana.

Referência bibliográfica:
Roque, M. I. R. (2011). Imagens esculpidas de Cristo na dor. Lumen Veritatis: Boletim Da Sociedade Científica Da Universidade Católica Portuguesa, (25), 8–10.

Fonte das imagens: http://www.wga.hu/html_m/g/grunewal/2isenhei/1view/index.html

[i]      O Musée d’Unterlinden está em obras, num projeto de melhoramento e extensão confiado ao gabinete de arquitetura Herzog & De Meuron, pelo que o retábulo se encontra em exposição num espaço provisório próximo do museu.

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